quarta-feira, julho 18

Os Contos de Fadas e a Linguagem na Infância

CAMINHANDO COM Cristiane Takemoto.

Os Contos de Fadas e a Linguagem na Infância

Nas últimas semanas, temos conversado sobre os Contos de Fadas e talvez você já tenha se perguntado como essas histórias podem ajudar os ouvintes, em especial as crianças. Pensando nisso, falaremos hoje de alguns aspectos que podem ser diretamente influenciados pela prática de ouvir e (re)contar histórias: o processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem oral.

Falar de linguagem é sempre um desafio devido às multiplas possibilidades de abordagem do tema. Autores consagrados como Jean Piajet, Lev Vygotsky, Mikhail Bakhtin e Steven Pinker pesquisaram o assunto e propuseram teorias que tentam explicar o que é e como funciona a linguagem. Em seus estudos, desenvolveram conceitos que muito contribuiram para o estudo da linguagem, conforme o quadro abaixo.

                         
 Fonte: www.google.com

Se por um lado os cognitivistas defendem a linguagem como instinto desenvolvido a partir da cognição, os interacionistas a entendem como produção sócio-histórica e cultural. Os avanços das neurociências também trazem muitas contribuições para os estudos nesta área, mas ainda assim algumas polêmicas persistem, especialmente as de natureza ideológica. Por isso, ao invés de confrontar posições, tentaremos apreender a essência de cada teoria e fazê-las interagir com situações cotidianas.

A título de ponto de partida, vamos começar refletindo um pouco sobre o que vem a ser o processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem oral, analisando inicialmente os termos separadamente para depois entender a que se referem quando juntos. Vamos lá!

O termo processo remete a algo que acontece em continuidade e com uma relação de interdependência entre as atapas. Dizer que algo é contínuo é o mesmo que dizer que não há interrupção e que cada evento está associado ao que ocorreu antes e irá repercutir no que virá depois. A linguagem é assim. Ela se constitui em um processo que inicia antes do nascimento e segue por toda vida.

Já o termo aquisição, quem procurar nos dicionários verá que ele se refere ao efeito de adquirir algo, ou seja, de pegar para si uma ‘coisa’ que já está pronta. No caso da linguagem, estaria relacionado a uma dotação genética inata para o movimento de input/output da língua falada, respeitando-se o processo de maturação das estruturas orgânicas. Ou seja, é o mesmo que dizer que as crianças já nascem programadas com uma espécie de gramática universal e que, com o passar do tempo, ela amadurece e começa a falar de acordo com a  língua da região em que vive. Para os interessados nessa abordagem, é interessante a leitura de  O instinto da linguagem (PINKER, 2004).

Em contrapartida, quando se fala de desenvolvimento, em geral se quer referir o aumento quantitativo e qualitativo das estruturas e processos envolvidos em um determinado contexto. No caso da linguagem, isso remete à sua constituição através construção histórica dos vínculos afetivos e sócioculturais. Nessa perspectiva, o desenvolvimento da linguagem ocorre através do diálogo e da troca de influências entre o sujeito e seu grupo, ou seja, na família, na escola, no trabalho e nos outros lugares onde as pessoas se encontram.

No caso específico da linguagem oral, o desenvolvimento não diz respeito simplesmente ao aumento do número de emissões mas também a evolução da complexidade, tanto no nível de percepção quanto na produção de sons, sílabas, frases e do discurso. A leitura de A formação social da mente (VYGOTSKY, 1991) pode ajudar a compreender melhor esta perspectiva.

Portanto, se à primeira vista as expressões aquisição e desenvolvimento parecem análogas, lembramos que para quem se aprofunda no tema, elas chegam a ser consideradas antagônicas, visto que a primeira presupõe que todos os indivíduo já nascem com um dispositivo para a linguagem e que ela acontecerá a partir de um dado momento, enquanto que a segunda acredita na importância fundamental da mediação do Outro, a ponto de atribuir a este Outro o favorecimento ou a total inviabilização do processo, como mostrado nos filmes  L'Enfant Sauvage (1969) e Nell (1994).



Em se tratando da expressão linguagem oral, algumas pessoas acham que ela se reduz à palavra falada, mas não é bem assim. Choros, gritos, ruídos, gorjeios, balbucios e risadas são manifestações de linguagem oral, já que se utilizam de estruturas relacionadas ao sistema sensório motor oral (boca, laringe e vias respiratórias etc.).  Esses comportamentos fazem parte de um amplo repertório de estratégias de interação entre um sujeito e as pessoas do ambiente em que ele vive.

Essa relação da criança com seus interlocutores tem início antes mesmo do nascimento, visto que, em torno do quarto mês de gestação, em condições normais, o bebê começa a perceber os sons internos e externos ao corpo da mãe e pode reagir a eles. Alguns autores acreditam que conversar com a “barriga” pode estimular a percepção da voz da mãe e/ou de outros familiares, facilitando seu reconhecimento após o nascimento.

Ao nascer, através do choro inaugural, a criança interage diretamente com o universo social a sua volta e em seus primeiros meses de vida, ela passa a emitir sons de acordo com suas sensações e com os estímulos do ambiente. Em casos de desenvolvimento dentro dos padrões considerados normais, por volta do quarto ou quinto mês de nascido, o bebê estará iniciando a fase do balbucio, que funciona como um exercício preparatório para etapas mais elaboradas da comunicação oral.

Em uma sequência crescente de variedade e sofisticação de emissões, por volta dos 12 meses, a criança deverá falar algumas palavras associadas a seu contexto de vida. Aos 24 meses ela deverá juntar palavras e aos 36 meses terá condições de narrar histórias e situações vividas. Para que essas etapas se sucedam, é importante assegurar que a criança  ouça bem, compreenda o que ouve e que ela seja adequadamente estimulada. Assim, ao longo de toda sua vida, o sujeito aprenderá novas maneiras de se expressar.

Além disso, é importante considerar que a infância é atravessada por diversos tipos de linguagem, sendo o uso da expressão linguagem oral, uma referência não apenas aos sons emitidos, mas também a seu papel de aspecto constituinte do sujeito, e, ao mesmo tempo, um traço que distingue o ser humano de toda e qualquer outra espécie viva. Cientes destas posições, vamos observá-la sem contudo estabelecer comparações com outros tipos de linguagem.

A essa altura, você deve está achando que já leu muito mas ainda não viu nada que relacione, de fato, as tais narrativas de Contos de Fadas ao processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem oral. Engano! A relação entre essas duas instâncias é tão próxima que por vezes elas podem se confundir. Entenda que, ao perceber os sons do mundo, a criança gradativamente aprende a identificar a voz do leitor/contador, tomando-a como modelo de linguagem oral. Assim, quando as crianças escutam Contos de Fadas, tais histórias podem se tornar um importante estímulo para o desenvolvimento de sua linguagem.

Neste sentido, entre os muitos aspectos importantes para o desenvolvimento da linguagem oral, a temporalidade tem papel significativo quando a criança começa a falar, visto que, nesta fase, ela se limita situações imediatas e ao uso de verbos no presente. Naturalmente, ao ouvir os contos, a criança vai sendo conduzida a diferentes tempos de conjugação verbal visto que o passado e o futuro lhes são apresentados através do uso das expressões de abertura e de encerramento. Assim, o “Era uma vez...” descortina para a criança um tempo passado e o “...felizes para sempre!” indica a possibilidade de um tempo futuro.
                                                                               

Outros aspectos da linguagem, como o léxico e o semântico também são contemplados por essas narrativas. Ao ouvir as histórias, as crianças aprendem um grande número de substantivos e adjetivos, ampliando seu vocabulário e, conforme observado por Takemoto (2005), ao recontar as histórias, as crianças exibem expressões faciais que transmitem surpresa, medo, tristeza, rancor e felicidade, demonstrando que percebem o conteúdo semântico das palavras.

No caso específico dos Contos de Fadas, algumas características deste gênero literário por si só, contribuem para que a linguagem da criança se torne mais elaborada e diversificada. Seu tipo de linguagem oferece a criança diferentes formas de uso da língua, trás de volta e expressões que já não são usadas atualmente e criam neologismos (novas palavras). Sem eles, dificilmente uma criança moderna saberia o significa “picar o dedo em uma roca” ou conheceria pronomes de tratamento como “Vossa Alteza” ou usaria palavras como “Abracadabra”.
                                                                                                             

Assim, com base em pesquisas científicas, podemos acreditar que, seja a linguagem oral entendida como habilidade inata ou como uma construção sociohistórico e cultural, os momentos de interação através da leitura/contação das narrativas podem oferecer preciosos estímulos ao desenvolvimento da linguagem na infância. E essa é apenas uma parte da contribuição dos Contos de Fadas ao desenvolvimento do sujeito, visto que eles atuam também na construção da estabilidade emocional, do desenvolvimento moral e até na aprendizagem da leitura/escrita. Mas isso já é assunto para outras conversas!

Feliz de ter estado aqui mais uma vez, desejo bons dias a todos e...
Até a próxima!! 




Cristiane Takemoto 
Fonoaudióloga, Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional, com formação em Psicanálise Clínica e Mestrado em Linguística. 



Referências:

LIMA, Lauro de O. Piaget Para Principiantes. 2. Ed. São Paulo: Summus, 1980.
PINKER, Steven.  O instinto da linguagem.  São Paulo: Martins Fontes, 2004.
VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
TAKEMOTO, Cristiane de M. L. O discurso narrativo oral: um estudo do papel do reconto. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pernambuco, 2005. E-book disponível em http://letrasdigitaisufpe.blogspot.com.br/


Filmes:
APTED, Michael.  Nell.   Estados Unidos, 1994.
TRUFFAUT, François.    L'enfant sauvage.   França, 1970.

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Elaine Cunha